segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Amor em solidão


Como lidar com a saudade que dilacera o corpo e machuca a alma? Em Direito de Amar observa-se o delirante retrato íntimo de um homem perdido, completamente corroído de dor no dia que decide se matar. George Falconer(Colin Firth) é um professor gay universitário de literatura inglesa que perde seu companheiro num trágico acidente. Em um único dia, em 1962 no sul da Califórnia, toda a amplitude da aura depressiva deste homem é exposta, visto que é um ser humano afetado pela perda do seu grande amor. Como superar a morte que evidencia o caos em própria vida terrena? George passa a ter uma vida sem emoção, vitalidade e satisfação após perder Jim (Matthew Coode) com quem viveu 16 anos de relacionamento estável, intenso. Como superar o luto? O que fazer para atenuar a dor no âmago? Sem conseguir levar adiante, apoiado pela ausência de perspectiva e reais motivações para continuar vivo - eis que ele vê no suicídio a única forma de alívio, de superação. Então, planeja seus últimos minutos - último dia ativo - como forma de despedida, de confronto consigo próprio. A estreia do estilista Tom Ford no cinema é louvável, um trabalho bastante emocional e poético que é favorecido pelo ótimo roteiro, baseado no livro Um Homem Só (por sinal, o título original do filme, muito mais cabível ao contexto) de Christopher Isherwood. Nítido êxito estético e cinematográfico que mergulha na introspecção, inquietação e desconstrução do ser humano.

George é um homem que sofre por não conseguir esquecer seu companheiro - e é justamente neste pretexto motivacional que o roteiro se articula muito bem: através de flashbacks que a narrativa se constrói e ganha veracidade íntima, contornos dramáticos. A melancolia paira em todo o filme. É difícil ter que lidar com a perda, ainda mais quando ela surge de maneira cruel e inevitável - e o roteiro alia-se da dor do seu personagem principal para transitar em assuntos como solidão, insegurança, reflexão interior. Inevitavelmente, George passa a refletir as próprias mazelas íntimas com a perda de Jim, vivenciando o árduo processo da infelicidade interior. O filme mergulha na realidade deste homem que não se vê mais conectado com nada ao seu redor. Nada lhe pertence mais, apenas a sensação de amargura e transtorno que sufoca cada parte de seu ser. Sem estereótipos, sensos de pieguismo - é um trabalho sensível que explora ao máximo a intimidade delirante de um ser que se evapora a cada minuto...em um único dia, vem à tona todos seus martírios e a vida - ou mesmo a vontade de morte - atinge o ápice. É necessário morrer para renascer? É necessário o suicídio para se livrar da dor? Como vislumbrar alguma motivação para viver seu amado? Eis os turbilhões de emoções que se manifestam dentro deste ser.

E o roteiro esmiuça os sentidos da intimidade, personalidade e concebe forma comportamental do personagem por acompanhá-lo em sua trajetória. Há flashbacks inseridos, ao longo das cenas, que demonstram as memórias do passado da relação amorosa de George com seu companheiro Jim - desde conversas íntimas, convívio e até o primeiro encontro de ambos. Há sua amizade de longa data com Charlie (Julianne Moore), com quem tem um forte elo emocional: ela é uma dona de casa que fora abandonada pelo marido, totalmente frustrada e que vê em George o homem que a poderia ter feito feliz. Mas, George é um homem sensibilizado pela sua perda e não consegue se desvencilhar deste tormento. Aparenta ter controle próprio, mas é a fragilidade que o condiciona. Até quando é válido manter as aparências? A direção de Tom Ford é extremamente cuidadosa, adota-se da perspectiva pessoal de George para demonstrar suas sensações e investe no estilo imagético riquíssimo, apurado. Há cenas silenciosas, apenas a câmera aproxima-se com closes expressivos ou mesmo há o foco lapidado na narrativa em off do personagem principal que funciona como um monólogo documentado. A fotografia de Eduard Grau assume as paletas das emoções de George: tem cores frias, tons claros, quando foca o universo tedioso dele - mas, ganha cores específicas e saturações avermelhadas quando pessoas transitam na sua esfera sensorial, preenchendo-o de sensações ou delírios. Há também a densa trilha sonora do compositor polonês Abel Korzeniowski que capta toda a melancolia presente, sonoridade marcante com acordes melódicos que variam de acordo com o senso do personagem. A atuação de Firth é incisiva, cheio de nuances e densa - dói vê-lo destroçado em sofrimento, pela complexidade e grandeza da interpretação.

O tom homoerótico é sutil, sensível, envolvente - ainda que o lado sexual não se posicione e impere sobre o verniz melancólico que o roteiro externa. Contudo, há situações que insinuam o senso de sexualidade que o personagem vivencia. Impressionante como a trama possui uma atmosfera tão erótica sem exibir uma só cena de sexo, o que é um grande feito num filme que envolve amor entre homens. George é assediado por seu aluno Kenny (Nicholas Hoult) que vê no professor um objeto de desejo, mas também um poço de charme intelectual e maturidade. O garoto insiste, investe e demonstra um poder de sedução - mas, George, ainda que atraído pela atuação comportamental e beleza física dele, não consegue se envolver tanto. Ele tenta amortecer o tesão, visto que o luto prevalece dentro de si. Há ainda cenas que mostram George observando homens másculos, corpos esculturais, praticando esporte (o tom homoerótico evidencia-se em captar os contornos dos corpos masculinos); há um flerte dele com um espanhol com quem se esbarra, por acaso, numa loja de conveniência - as cores saltam fortes, os closes nos olhos e bocas do homem que espreita sexualmente George. E as próprias cenas que pautam o convívio dele com seu companheiro Jim tendem a ter manisfestos homoafetivos, sinceros, tangíveis. O filme direciona-se ao público homossexual, mas atinge a todos por ser verdadeiro - não é um trabalho panfletário que discursa a causa da homossexualidade, mas sim verbaliza o valor de um homem que jamais esquece o grande amor por outro homem. Qualquer ser humano se identifica, até o mais cético. Afinal, o que não é a própria vida senão a busca por nós mesmos - ou, em linhas duras, a ânsia por amar e ser amado. E além, é um filme de estudo sobre solidão, a dificuldade em lidar com perdas e a depressão consequente. Trabalho cinematográfico irretocável, tocante e pungente.

 
A Single Man (EUA, 2009)

Direção de Tom Ford
Roteiro de Tom Ford, David Scearce, baseado no livro de Christopher Isherwood
Com Colin Firth, Julianne Moore, Nicholas Hoult